Um fio de
sangue desprendia-se do corpo do alquimista morto, indo cair na pequena fresta
aberta pelos golpes de picareta na laje pintada. Mas Kalil não percebeu isso.
Não, ao menos, até que um chiado forte, como água sobre ferro incandescente,
chamasse sua atenção. Vapores fétidos agora emanavam da fenda no piso.
Como se
convocado por alguma força sobrenatural, um raio golpeou o teto da igreja,
deixando ali um buraco que, em seu formato, parecia uma versão ampliada daquele
feito pela picareta na pedra. Ambos tinham o contorno aproximado de um morcego.
Imediatamente
depois, um segundo relâmpago passou pela abertura, que ainda ardia em brasa, e
atingiu a própria laje sob o altar, reduzindo-a a uma nuvem de faíscas, quentes
como o próprio raio e afiadas como navalhas. Essas fagulhas atingiram os olhos
de Kalil, causando as dolorosas feridas que iriam levá-lo à cegueira.
Naquele
momento, no entanto, apesar da dor, do sangue e das lágrimas, ele ainda
enxergava. Pôde ver que, da cratera aberta no chão pelo segundo raio, emergiu a
figura, sem cabeça, de um homem trajando roupas que, no passado, talvez
tivessem sido envergadas por um grande monarca. Mas, naquele momento, os trajes
apresentavam-se puídos e descorados, trazendo consigo o odor acre da sepultura.
O estranho
tinha o porte da realeza, movendo-se com gestos sempre majestosos. Aquele
poderia ser o vulto acéfalo de um grande príncipe, uma mancha negra de sangue
sublinhando o vácuo sobre os ombros.
Kalil ouviu
então uma gargalhada profana, vinda, sem sombra de dúvida, do cilindro de
couro. Da misteriosa caixa que Ghaji sempre trazia junto de si.
A chuva e os
raios intensificavam-se do lado de fora. Das quatro tochas que Ghaji
improvisara, usando o compasso e algumas outras ferramentas de madeira, apenas
uma permanecia acesa. A água gelada
que se filtrava pelo teto, trazendo
partículas de madeira e rocha, escorria pelos cabelos e testa do guerreiro,
atingia-lhes as vistas, fazia com que os olhos feridos de Kalil ardessem ainda
mais.
Mas ele se
sentia incapaz de fechá-los. O príncipe acéfalo abriu a caixa cilíndrica com
muito cuidado. E retirou, dali, seu prêmio das Trevas: a cabeça mumificada –
mas ainda viva – de Vlad Drácula.
Exceto pelo
sorriso e pelos olhos brilhantes, ela era tal como Kalil, que a transportara na
ponta da lança durante boa parte do trajeto até Istambul, se lembrava. Uma
relíquia sangrenta, de barbas negras e carne vincada pelas dores da morte.
Com dignidade
marcial, o corpo fez seu complemento pousar sobre a mancha escura entre os
ombros. As feridas que separavam a cabeça e o tronco cicatrizavam de forma
lenta, mas perceptível. Havia um som desagradável associado ao processo.
– Você vai viver, e vai se lembrar – amaldiçoou
o príncipe que, com uma mesura, se ajoelhou diante de Kalil, beijando-lhe as
faces e sorvendo o sangue que escorria dos olhos já quase cegos.
Os instantes
se arrastavam. A própria tempestade parecia aguardar que algo emanasse das
Trevas de Snagov. E então, um uivo gélido se fez ouvir, vindo de toda parte,
vindo da própria terra. Na floresta, além do lago, as alcateias da
Transilvânia, manifestando-se pela primeira vez desde a conquista turca,
saudavam o retorno de seu mestre.
Um último raio
atingiu a base comum às três torres da igreja, fazendo-as ruir com um estrondo.
Kalil, distraído pela música das feras, não teve tempo de fugir ou esquivar-se.
Rochas atingiram as pernas do soldado, esmagando-as.
O relâmpago
foi forte o suficiente para projetar as três cúpulas recobertas de alcatrão por
sobre as muralhas, enviando-as diretamente para o fundo do lago.
No acampamento
turco montado às margens de Snagov, um sentinela que tremia de fri em meio à
violenta tempestade, jura ter visto, nas águas revoltas pelo impacto das
cúpulas, um braço humano, já bem decomposto, vir à tona e submergir logo em
seguida.
Preso a esse
braço, afirma o soldado, havia uma algema e um grilhão, ambos feitos de um metal
que, sob a luz dos relâmpagos, pareceu estranhamente dourado...
Pessoal, espero que tenham gostado da história,
mas fiquei triste por vocês não comentarem...
mas fiquei triste por vocês não comentarem...
Até a próxima, galera........
Tava com saudade dos seus contos, são sempre bem escritos, intrigantes e divertidos. Continue postando, pleeease... PS: Que bom q voltou, pensei q vc tinha morrido.
ResponderExcluirKKKKK.
ExcluirComo diz meu grande amigo Michael (Príncipe Gangrel de Constantinopla): "Não se pode matar o que já está morto"....
Que bom que você comentou, querida. Aliás, seus comentários me motivam muito, sabia? Estive fora por motivos trabalhistas, mas agora estou tentando obter um tempinho pra postar algumas histórias.
Agradeço de coração seu comentário.