Mas deixemos estas preocupações para homens sábios pois o que pretendo aqui é apenas contar a minha estória. Vivia eu em uma dessas grandes cidades brasileiras; agora tudo fica cada vez mais cinzento em minha mente e eu já não me lembro o nome. Jovem honesto e esforçado, trabalhava duro todos os dias para ajudar com o sustento da família e já a alguns anos, postergava o desejo do curso superior diante da necessidade mais imediata de ter o que comer e pagar as contas. Sempre levantando quando ainda devia estar dormindo, com o sabor do fracasso, que faz muitos de nós viver diariamente beirando a depressão e a revolta. Todo dia; todo maldito santo dia, acordava cedo para pegar o ônibus que parava próximo de minha casa. Lá sempre havia uma mulher com uma criança, vestida em uma farda de colégio público com cerca de uns dez anos de idade. Um homem com cara de preocupado, com uma mochila nas costas e que sempre olhava por sobre os ombros ou em direção a qualquer barulho mais alto. E um vendedor. Gente como eu, que rala o dia todo para tentar tirar o gosto de merda da boca. Gente como eu fui um dia, vestido em uma farda escolar, sonhando em ser presidente ou astronauta, sem saber que o destino presenteia apenas alguns escolhidos, alocando a maioria como cabeceiros (ou chapeados dependendo da região do país) da pirâmide social. Gente com medo de tudo, nessas malditas cidades grandes em que a violência é como um câncer em estado de metástase. Gente sempre disposta a vender e se vender pela mínima condição de sobrevivência.
Mas continuemos. Nesse dia em questão, tinha acordado tarde e acabei saindo sem tomar café. O tempo parece lutar contra os homens hoje em dia. Já no ponto de ônibus, percebi que nunca tinha reparado no que negociava aquele vendedor. Por curiosidade repentina, me aproximei de seu carrinho. Estava coberto com uma lona. Mas como ele já tinha notado minha aproximação e eu já estava com cara de tacho olhando pro seu carrinho como uma criança curiosa, resolvi perguntar o que era aquilo. Ele então puxou a cobertura e me mostrou as goiabas mais suculentas e grandes que eu já vi (é sério cara, era uma goiaba gigante!). Sorrindo disse: Goiabas garoto! E são ou não são as mais bonitas que você já viu? Vendo no centro a muitos anos e não tem melhor por lá, por isso que minha clientela é fiel! Naquele momento, a visão das frutas somou-se à fome que eu sentia por não ter tomado café e fez meu estômago roncar em desespero. Um dilema formou-se então. Tendo apenas R$1.50, eu não poderia tomar o ônibus e comprar uma daquelas goiabas e me peguei conversando comigo mesmo. Caraca velho, será que eu pego o ônibus ou será que eu compro uma goiaba? Foi então que me veio à boca novamente aquele gosto de fracasso. Imagine só, ficar com fome por causa de um emprego de bosta que nem me permitia fazer um lanche. Um trabalho que deveria me dar o suficiente para viver, além de apenas sobreviver. Uma droga de ocupação que não me permitia ter tempo pra mais nada além de dormir. Será mesmo o tempo que luta contra o homem, ou seremos nós, vítimas de nós mesmos, que em nossos delírios de grandeza e desejos de riqueza vivemos tentando espreme-lo um pouco mais? Valia mesmo a pena tanto esforço por uma vida medíocre? Por um pretenso pequeno-burguês que consumia minhas forças na fantasia de escalar a pirâmide sempre pisando em pessoas como eu e nos empurrando pra baixo sem se importar com os MEUS sonhos? Hoje não. Hoje saciaria o meu desejo imediato e faria uma bela caminhada para o trabalho chegando lá a hora que tivesse que chegar. E estava mais era disposto a mandar o chefe enfiar o emprego naquele canto, caso ele se enfezasse comigo. Paguei a goiaba e a ergui bem na minha frente, como um troféu da minha atitude. Enfim tinha feito algo pensando em mim mesmo.
Só então percebi dois homens em um beco próximo me observando. O cara da mochila também percebeu e ficou observando à cena quando os dois me chamaram dizendo assim: Chegaí, chegaí, chegaí mano! Na hora meu coração disparou, sentindo que havia algo errado. Pensei em sair correndo mas eis a questão de viver em uma comunidade violenta (se é que ainda existem comunidades tranquilas). Já os tinha visto por ali e eles com certeza, sabiam que eu esperava ali o ônibus todos os dias, então de que me adiantava postergar o desejo deles? Talvez nem fosse nada de mais, racionalizei, apesar de perceber algo diabólico em seus olhares e ter sido acometido de uma violenta inquietação. Me aproximei devagar e enquanto me aproximava eles recuaram um pouco mais pra dentro do beco. Assim que adentrei naquele local, percebi o quanto era sujo e escuro e o forte cheiro de crack que emanava dali (não, não conheço o cheiro por experiência própria mas já o senti várias vezes. Em alguns lugares é mais constante que o cheiro de pão saindo da padaria). Tão perto todos os dias, aquele pedaço do inferno que costumamos ignorar hoje pedia atenção e apesar de algo dentro de mim dizer, cai fora daí idiota, a fleuma que nos acomete nesses dias atuais parecia me dirigir em direção a eles. Mal adentrei o beco imundo e meus pensamentos foram interrompidos quando um deles passou a mão na minha goiaba e com um sorriso escroto, de quem acha que todos devem teme-lo disse: Já era, já era, já era a goiaba mano. Meus olhos se encheram de lágrimas diante do desrespeito e falei com a voz embargada: Caraca mano, cê pegou minha goiaba. Isso só aumentou o sorriso do canalha e segurando a goiaba com uma mão enquanto com a outra mostrava um volume na cintura por baixo da blusa o desgraçado repetiu: Já era, já era, já era a goiaba mano.
Terminar a frase e tascar uma mordida na minha fruta foram atos contínuos e confesso que chorava de ódio diante de tão indigna humilhação. A voz saía empolada e minhas mãos se crispavam enquanto eu dizia a mim mesmo: Caraca velho, o cara mordeu minha goiaba. Caraca velho o cara roubou minha goiaba. Então, mais do que nunca eu senti aquele amargor pútrido de merda, da merda que todo maldito santo dia somos obrigados a engolir e foi aí que algo dentro de mim estalou enquanto bradei em pensamento incontido, hoje não! Como alguém possuído, eu pulei com as mãos na garganta do cara e nem percebi quando o seu parceiro colocava a mão nas costas. Por um instante, um breve e insignificante instante, me senti livre das amarras da sociedade. Um gigante resoluto, aplicando a justiça que todos sabem ser merecida enquanto sentia seus ossos e músculos do pescoço se contraindo entre minhas mãos. Deliciando-me, com o pavor em seus olhos ao descobrir que nem todos tem medo de suas demonstrações ignóbeis de falso poder. Sentindo-me um Deus em seu trabalho de punir os injustos. Sim, existia Deus. Eu era Deus! E então o estampido; o clarão, algo mordeu minhas costelas e sua mordida era quente. Minhas mãos se afrouxaram e confesso que não entendi na hora o que estava acontecendo. O cara me jogou de cima dele e eu lembrei da mordida. Olhei para o lado do meu corpo, debaixo do braço esquerdo e vi um buraquinho que jorrava sangue. Só quando vi o parceiro do sacana ajudando-o a se levantar com um revólver na mão é que minha mente tomou ciência do que tinha acontecido. Eu tinha sido baleado; por causa de uma goiaba. Não, eu não era Deus.
Os segundos seguintes foram confusos, quase como um sonho e ainda assim extremamente claros (ainda que essa clareza de entendimento só tenha vindo depois que tudo acabou). O cara da mochila, que tinha acompanhado a cena de longe, pareceu despertar depois do estampido e enquanto eu tentava me levantar, vi quando ele sacou uma arma. Naquele estupor de “confusa clareza”, finalmente entendi aquele comportamento assustado que citei no começo e aquela mochila. A farda escondida, fruto de uma sociedade que aprendeu a perdoar os maus e punir os bons. O medo constante de ser reconhecido em sua própria comunidade. Compreendi tudo isso no espaço de tempo dele sacar a arma e dizer: Parado, polícia! Mas quem vive no crime vive mesmo a beira da morte eu acho. Mesmo já estando na mira do “cana”, o cara começou a levantar a arma em direção a ele. Bem, apenas começou porque foi alvejado com dois tiros no peito enquanto eu me arrastava em direção ao ponto de ônibus. A mulher com a criança (que pensando bem agora, eu nunca perguntei o nome; a nenhum deles aliás, meus companheiros diários naquele ponto de ônibus) parecia simplesmente perdida na situação e conseguiu apenas agarrar o menino enquanto gritava desesperadamente. Ela nem viu quando o segundo meliante, o que tinha um volume na frente, aquele mesmo filho da puta que havia mordido minha goiaba, se esgueirou pra trás dela enquanto sacava a arma, pra usa-la como escudo. Com a linha de tiro obstruída, o policial foi incapaz de atirar. O bandido não. Sem nenhuma preocupação com a vida alheia, este esvaziou o tambor do seu revolver enquanto o “puliça” saltava e rolava para o meio da rua. Quatro disparos erraram o alvo, os outros dois não. Um pegou em sua coxa esquerda e o outro, na nuca da mulher que nada tinha a ver com isso. Já bem próximo do ponto de ônibus, vi quando seu corpo despencou por cima do garoto que tremia e chorava gritando: Minha mãe não, minha mãe não! O cara das goiabas estava já enfiado debaixo do carrinho, quando o policial mesmo baleado teve tempo de fazer sua manobra de rolamento e conseguir uma linha de tiro limpo. Um único disparo, bem na testa, e fim de papo como se diz. O que não deu tempo no meio da rua, foi de sair da frente do ônibus que chegava justamente naquele segundo e em cujo interior havia um motorista que percebeu a situação já perto demais e decidiu pisar fundo para passar logo pelo local. Parece que quem vive combatendo o crime também vive a beira da morte.
No fim eu já me apoiava debilmente no carrinho das goiabas e enquanto a vista ia escurecendo, eu ia enfiando a mão por baixo da lona e tateando em busca do que era meu por direito. Apanhei uma daquelas frutas e me preparava pra morde-la quando dei meu ultimo suspiro. O cara do carrinho já ia ficando de pé novamente quando meu coração parou diante dele, quatro outros cadáveres e uma criança atônita agarrada ao corpo da mãe. Não houve luz nem túnel luminoso, apenas um senso hiperconciente do fim e eu me levantando de novo enquanto o populacho se aproximava para acompanhar a cena cotidiana de violência. Ninguém me via e ao contrário do que mostram nos filmes eu não tive dúvida nenhuma sobre minha situação. Estranho é que além dos vivos não vi mais ninguém. Nem policial, nem mãe, nem bandidos. Alguns dias depois, acompanhei meu velório e vi o desespero dos meus familiares com muito tristeza mas conformado por saber que mais tarde eles também se conformariam e seguiriam em frente como seguem todos. A “boca de fumo” que tinha no beco, obviamente foi estourada no dia seguinte, deixando um saldo de cinco mortos do lado dos dois “aviões” locais e três usuários que foram pegos no momento da vingança, lugar errado na hora errada eu acho. E o garoto; bem, eu o tenho acompanhado já a alguns anos e vi seu comportamento mudar nesse tempo que tem ficado com os avós. Hoje ele escreve sobre a tristeza e inutilidade da vida enquanto preenche o quarto com fotos dos atiradores de Columbine e do massacre de Realengo. No próximo sábado ele vai comprar sua arma com o contato que conseguiu e segunda mesmo os cretinos de seu colégio vão ver quem realmente é o órfão esquisito. E o câncer continua se espalhando enquanto um fantasma com uma goiaba continua assombrando um certo ponto de ônibus.
Autor: Valter Ramos
Muito bom
ResponderExcluirNossa, muito muito bom! Eu achei incrível. Eu pude imaginar cada detalhe da estória e isso me faz pensar no dia a dia. Realmente não podemos fazer tudo que queremos de verdade, sempre temos restrições, ou da empresa ( que é meu caso.. ) ou família..enfim, é muito difícil. Infelizmente muita gente inocente acaba pagando por coisas injustamente. No Brasil mesmo, podemos ver muito isso, um trabalhador que acorda super cedo, trabalha bastante e mal tem tempo de descansar é roubado e nada é feito por ele, e caso a gente realmente reaja, é a morte que ganhamos como troféu de uma vida de luta por nada. Eu adorei mesmo! O Autor Valter Ramos está de parabéns!
ResponderExcluir