Sons da meia noite



A pequena luz do stand by da TV o importunava. Os sons de cada passada do ponteiro do relógio o atormentavam. A orquestra de grilos lá fora o fazia agonizar. E assim seguia mais uma noite de insônia dele.
O ranger da cama denunciava mais uma virada de lado, em busca da posição perfeita para dormir, posição esta que nunca encontrava. Ele virou, encolheu ainda mais sua posição fetal, puxou o cobertor próximo da orelha e respirou fundo, o máximo que seus pulmões aguentaram. Então tudo começou…Um estrondoso barulho rompeu a madrugada.
Coisa rápida, apenas dois ou três segundos, mas o eco durou mais.A pequena luz do stand by da TV o importunava. Os sons de cada passada do ponteiro do relógio o atormentavam. A orquestra de grilos lá fora o fazia agonizar. E assim seguia mais uma noite de insônia dele.
Era engraçado para ele, mesmo ainda com o coração acelerado do susto, imaginar o som viajando pelo vilarejo, vindo em sua direção. Não se abalou ao sentir sua casa vibrando quando o eco chegou até ela. Nem se impressionou quando aquela luzinha chata, aquela vermelha, próxima ao botão de on/off da TV, apagou.
Lógico, o fato de ele ter virado de costas pra ela antes não o fez reparar, mas sua imaginação procurando por sentindo naquele estrondo não o deixou ver aquilo de qualquer jeito. Ele detestava trovoadas, aliás, à noite, ele detestava tudo que emitia sons. Mais calmo, fechou vagarosamente os olhos outra vez. Sentia o coração mais lento. Mal ouvia a própria respiração.
Mal ouvia os pensamentos. Mas ele se deu conta de que algo a mais não ouvia, alguma coisa estava faltando.O que seria? Ah, sim, os grilos. Ele não conseguia ouvir os grilos. Mas porque diabos não conseguia ouvi-los? Aquele bando de insetos imprestáveis, que tiravam seu sono noite após noite agora, do nada, faziam falta. Isso é loucura, pensava ele.
Talvez, sei lá, só talvez, aquele som maluco de antes tenha assustado aquelas malditas criaturas. Ou melhor, aquele som ensurdecedor foi tão alto que explodiu cada odioso inseto, transformando-os em gosmas esverdeadas, com sangue e entranhas emboladas, como sempre foram, mas expostas naqueles pequenos corpos. Ele sorriu ao pensar nisso. Peraí! Som ensurdecedor? Não estaria ele surdo por causa do barulho? Virou novamente para o lado esquerdo e ficou tão feliz ao ouvir o ranger da cama novamente que não notou a luz chata e vermelha já inexistente na TV.
Instantes mais tarde, seus punhos cerraram com toda força assim como a dor na nuca começou, seus típicos sintomas de quando é tomado pela raiva. O motivo, os cachorros, os malditos cachorros começaram a latir! Era demais pra uma noite! Primeiro, um ou dois latiram, depois, uns seis ou dez, mais depois, uns milhares.
Claro que onde morava não existia milhares de cães, mas para uma pessoa com insônia e com raiva, um pequeno grilo era igual a uma matilha, quanto mais umas dezenas de cães emitindo aqueles detestáveis sons!
Horas se passaram com aqueles latidos, ora, horas pra alguém com insônia e enraivecido. Ele já estava se habituando com aqueles diálogos canino, mas o que veio a seguir realmente não o deixaria dormir naquela noite, ou melhor, no resto da sua vida: uma nova trovoada. Desta vez, ainda mais alta que a anterior. Ele nem se recuperou do susto e o eco já estremecia sua casa novamente.
Ainda pálido, buscou respirar mais calmamente e pensar no que estava acontecendo, pois, aquilo não parecia normal. A única coisa que lhe fazia sentido era o que seu pai lhe dizia quando criança: quando um raio cair, você conta um elefante, dois elefantes, três elefantes e se o barulho do trovão vier neste momento, quer dizer que o raio está a três elefantes de distância. Quando se lembrou disso, imaginou que o eco podia ser contado da mesma forma, assim, o primeiro barulho ocorreu a uns quatro elefantes de distância e o último, a meio elefante, no máximo.
Ele jogou as cobertas pra longe, vestiu seu calção, apertou o interruptor pra ligar a luz, mas a luz não acendeu. Ignorando a lâmpada apagada, saiu de casa naquela noite quente, iluminada e chuvosa. Ou melhor, para o seu espanto, não tinha chuva nenhuma, tampouco nuvens. O céu estava totalmente nu, com estrelas brilhantes e uma lua cheia incrivelmente linda, no meio do céu.                

Ao ver aquela noite linda, não pôde deixar de lembrar sua antiga namorada. Ela, com seus belos cabelos lisos, sorriso cheio de dentes brancos, olhar sereno de olhos claros e voz adocicada. Era tudo perfeito antes, quando estavam juntos, mas infelizmente, o destino tirou sua vida na forma de um acidente de carro. Quando pensou nisso, não quis mais pensar nela, nem no último beijo apaixonado nem no desespero de ver aquele rosto lindo transformado numa caixa craniana vazia de cérebro e desfigurada.
Ele morava na última casa do vilarejo. Atrás, podia vislumbrar um pequeno bosque e mais ao fundo, as montanhas floridas. À frente, tinha todas as casas para olhar. Porém, aos lados, nenhum vizinho. Para muitos isso poderia ser estranho, mas para ele, era maravilhoso! Ao olhar para o vilarejo, achou amedrontador notar que todas as luzes estavam apagadas. Mais amedrontador ainda, foi aguçar seus ouvidos e não ouvir sequer um latido. Que diabos estava acontecendo?!
Respirou coragem, e iniciou seus passos em direção à rua de paralelepípedos. Ninguém mais estava ali. Ele parecia ser o único curioso. Cada passo que dava em direção ao centro do vilarejo espantava-se ao não ouvir nada. Nunca imaginou que o silêncio fosse mais irritante que o barulho, apesar de ele já não estar mais irritado.
Num lugar seguro, as casas não têm muros, e assim era o vilarejo. Era comum ver entre os vãos dos casebres de madeira, seus moradores em situações íntimas. Havia algumas casas que era possível admirar a luz no outro exterior dela. Naquele momento, porém, onde não sabia exatamente que horas eram, e naquela estranha escuridão, onde apenas ali fora era iluminado pela lua, nada se via nos interiores. E aquilo era ainda mais assustador. Em cada lado que olhava em cada esquina que parava em cada casa que espiava nenhum ser, nenhum movimento, nenhum som. Som? Espera, há um som…
Era metálico? Sim, era. E contínuo. Mas de onde vinha? Ah, do norte. Dotado de uma curiosidade aguçada, ou talvez de um desjuízo, ele andou em direção ao barulho. Algumas casas dali conseguiu ouvir algo mais, mas que não era contínuo. Ocorria a cada o quê, três segundos? Quando chegou à esquina seguinte, e mirou a leste, pôde entender o que era o som, mas também, ao mesmo tempo, sentiu seus joelhos amolecerem.
Há alguns casebres de onde estava, contemplou uma figura nua, no tamanho de duas pessoas de altura, forte como um gorila, lento como uma lesma. Cada passo daquilo durava aqueles três segundos. Via-se bem, havia algo preso ao pescoço, e naquilo, escorria uma corrente que lambia o chão. Em partes daquele monstruoso corpo, havia pinturas vermelhas. E vermelho sangue. A nuca careca mostrava uma cicatriz gigante. Aquilo era terrível e jamais imaginável por ele.
Aquele andar lento, de repente cessou. O barulho dos passos e da corrente estagnou. Aos poucos, aquilo começou a virar. Sua cabeça pálida começou a girar junto. Rapidamente, aquele olho negro e grande do monstro encarava seus olhos. Ele soltou um gemido e começou a correr de onde vinha. Sua corrida era atrapalhada pelos movimentos dos joelhos medrosos.
Quando correu dez casas, parou e bisbilhotou atrás. Aquele semblante odioso já estava onde ele estava anteriormente e também o encarava. O monstro da corrente começou a correr em sua direção e ele pôde contemplar a velocidade daquilo que pensou antes ser lento, mas que, se ele não corresse, seria pego rapidamente.
Notou que não ganharia na corrida. Tinha que pensar em algo, e rápido! Esconder-se foi a única alternativa que lhe veio à mente. Tão logo pensou, avistou um vão em uma daquelas casas e correu lá pra baixo. Abaixado, orando mentalmente, empalideceu ao notar o que estava ao seu lado: quatro patas, pelos negros e cheios de terra e alguma outra coisa que não podia dizer o que era. Não sabia se ficava mais tranquilo ou não, quando notou que o cão ao seu lado estava morto. Quando voltou seus pensamentos àquilo que fugia, escutou surdos e pesados baques na grama, próximo de onde estava.
A cada três segundos escutava o som e, lógico, já sabia do que se tratava. Não demorou muito e viu um enorme pé esquerdo aterrissar no solo. De onde estava abaixado e escondido, pôde ver um pé direito descendo ao chão, este, porém, menor que o outro, já que estava pela metade, aparentemente decepado, com sangue já seco e um pedaço de madeira fincado no que parecia ser a parte mais sensível daquele pedaço de pé.
Ao ver esta grotesca cena, um calor correu de sua barriga até a garganta, e este calor tinha um gosto azedo e cheiro fétido, que deixou escapar pela boca sem nem mesmo pensar a respeito. Aquela cena desajustada piorou quando ele viu a corrente, que desta vez não fazia barulho, pois agora estava beijando a grama.
De perto, ele observou que o fim dela continha um gancho e, na ponta deste, um negro e grandeglobo ocular, transpassado pelo ferro. Seu medo era tanto que jurava que aquela esfera pútrida estava o observando, mas claro, essa ideia era irreal.
Qual seria seu próximo passo? Ficar escondido ali até quando? Pensou que, mas alguns passos, quando aquele demônio virasse para dar volta na casa, ele sairia dali e correria o máximo que pudesse o mais rápido possível. E era o que decidiu. Entretanto, o medo não deixava sair daquele esconderijo, mesmo depois de saber que a criatura já estava do outro lado da casa.
Ele tentava encorajar-se, mas na hora que ia, o terror não deixava sair do lugar. E pela última vez pensou: vou no três. Um, dois,… três. Então arrastou-se um pouco, empurrou seu corpo pra cima com os braços, ainda meio desequilibrado deu o impulso necessário pra começar sua corrida, mas antes mesmo de iniciá-la, bateu em algo.
Ao levantar sua cabeça, notou que um olho grande e negro o observava. Onde o segundo olho deveria estar, uma cova negra e profunda estava no lugar. Um rosto sem cor e faltando pele em alguns lugares, com cortes, sangue e dentes pretos, amarelos e em formato de garras sorrindo uma ideia diabólica. Um ser aparentemente familiar, no entanto, totalmente além do que sua imaginação pudesse criar. Num impulso natural onde qualquer um faria o mesmo, ele gritou desesperadamente!
O que não esperava era que a criatura abrisse aquela sua boca horrorosa e fizesse o mesmo, entretanto, não podia dizer se aquele berro era de medo, mas aquilo veio como uma trovoada, um som alto que durou poucos segundos e que, a nenhum elefante de distância, o eco vibrou as casas ali próximas, depois vibrou a casa dele, e vibraria o bosque e a montanha florida, e o riacho que vinha depois, e calaria todos os grilos no caminho.
Ele, porém, não escutaria todo o ecoar daquele urro, aliás, escutaria apenas os primeiros décimos de segundo, pois, o alto som penetrou seus ouvidos, destruindo os pequenos ossos que tinha ali dentro. A vibração do ar chegou ao interior de sua cabeça, empurrando e tirando do lugar partes do sensível cérebro.
Quando estas ondas batiam no osso do crânio, voltavam numa direção espelhada e assim, seus pensamentos se desfizeram como morangos num liquidificador, bem como seus miolos. Sangue, pensamentos e cérebro formaram uma pasta homogênea que pressionaram todo o crânio de forma que nem este aguentou.
Como algumas latas sofrem com as bombinhas na época de São João, a cabeça dele partiu cada lado em uma direção diferente, levando para o alto aquela gosma rosa avermelhado. Um de seus olhos desceu junto com a pele do que um dia foi chamado de rosto e conseguiu olhar o próprio pescoço.
O outro globo foi mais longe um pouco, conseguindo rolar e olhar novamente a cicatriz na nuca daquela misteriosa figura. Tudo isso aconteceu rapidamente, assim como a queda daquele corpo sem cabeça.Não se sabe o que fez aquele monstro depois disso, pois, nenhuma outra pessoa mais o viu, nem cachorros, nem mesmo os grilos. E agora não há mais insônia, porque ele agora dorme para sempre.

Fonte: Minilua


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