Desnecessário dizer, eu não estava com pressa alguma para chegar na casa de Lisa e, por isso, este ano decidi tomar uma antiga rota por áreas afastadas. Achei que seria uma boa oportunidade de mostrar para Cynthia a beleza da natureza enquanto ganhava um pouco mais de tempo com ela, antes de deixá-la por quatro semanas e meia. Ela estava tão absorta com a paisagem que só perguntava seu periódico "Papai, o que é isso?" ou "já chegamos?" e, em seguida, grudava seu pequeno rosto redondo na janela. E eu respondia a cada pergunta "É um antigo silo de grãos, querida", ou "Quase, querida."
Depois de um tempo, liguei o rádio para ouvir um ruído de fundo tranquilo e comecei a cair em um silencioso transe meditativo, resultado de tanto tempo dirigindo. No entanto, minha calma logo foi perturbada por um grito de Cynthia. Pisei nos freios instintivamente, fazendo o carro dar uma parada brusca e olhei para Cynthia. "O que foi? Cynthia, o que há de errado?" eu perguntei em pânico. Minha mente passou por tudo que poderia estar errado: um ataque cardíaco, um edema pulmonar, insuficiência renal (pensamentos estranhos, já que Cynthia estava perfeitamente saudável)... Mas, Cynthia só olhava pela janela, paralisada pelo o que quer que seja que estava lá fora.
Quando olhei por cima de sua pequena cabeça, entendi o que havia provocado o grito estridente.
Era um vidoeiro branco enorme no meio de um campo nevado. Bem, além do tamanho excepcionalmente uma grande árvore (bétulas não costumam crescer muito mais do que trinta centímetros de diâmetro e este tinha, no mínimo, um metro e meio). Outra coisa que me chamou a atenção foram as folhas da árvore. Já havíamos percorrido uma boa distância no campo (cerca de trinta metros) e eu ainda estava olhando por trás da cabeça de Cynthia (que estava firmemente colada à janela neste ponto), mas eu mal podia distinguir o formato das folhas. Não consegui entender no início, mas depois de olhar cuidadosamente, percebi que as folhas da árvore não eram folhas no final das contas... elas eram ... sapatos. Centenas deles. Suspensos nos ramos pelos cadarços, de todas as formas e tamanhos imagináveis. Eu lentamente abri a porta e sai para olhar mais de perto. O tamanho da árvore era impressionante e a distribuição de seus ramos era inacreditável. Arredondando para cima, imagino que haviam cerca de seis ou sete mil pares de sapatos suspensos, alguns até mesmo nos ramos menores. Comecei a caminhar em círculos na frente do carro, incapaz de tirar os olhos do espetáculo bizarro diante de mim. Então, sem aviso, eu ouvi a outra porta abrindo e Cynthia saiu correndo em direção à árvore com um sorriso infantil.
Além do fato de que este era um campo no meio do nada, também era o auge do inverno. Quando Cynthia saiu correndo em direção à árvore vestindo apenas uma calça jeans e uma camiseta, minha primeira reação foi buscar seu casaco (Deus sabe que ela não iria colocá-lo mesmo que estivesse 50 graus negativos). Eu me virei para pegar o casaco dentro carro e quando me virei, com o casaco na mão, gritando para Cynthia vesti-lo... ela havia sumido.
Meus olhos procuraram freneticamente na neve por ela, seguindo suas pegadas diretamente para a base da árvore. "Cynthia!" eu chamei. Eu ouvi uma risada de menina em resposta. "Cynthia, não temos tempo para brincar!" Dei um passo em direção à árvore e, conforme a neve era esmagada sob meus pés, ouvi sua risada inconfundível de novo. "Cynthia, venha aqui neste instante!" eu gritei, minha voz se tornando um pouco mais rouca. Para meu imenso alívio ela revelou-se, saindo correndo de trás da árvore de sapatos. Mas havia algo errado com ela, algo que eu não conseguia identificar. Ela estava descalça.
"Tudo bem, papai, eu estou aqui! Nós temos que ir? A árvore é tão quente e agradável!"
Agarrei-a pelos ombros, sacudindo seu pequeno corpo, quase tremendo de medo "Cynthia, onde estão seus sapatos?"
Nervosa, ela respondeu: "O homem bonzinho me disse para tira-los, papai-olha, ele me deu um colar lindo!"
Meu coração afundou até boca do meu estômago. Com certeza, ali, em volta do pescoço da minha filha, estava um pequeno pingente em forma de coração. Eu apertei minha mandíbula, peguei o pingente e tirei-o.
"Papai? Que há de errado?"
"Cynthia, eu preciso que você volte para o carro e fique lá. Agora".
"Mas papai, meu sapa..."
"AGORA, Cynthia. Entre no carro e tranque as portas. Não abra para ninguém até que eu diga, ok?"
"Tudo bem..."
Cynthia saiu andando irritada em direção ao carro e lançando olhares para mim por cima do ombro. Eu observava cada passo que dava, até que ela finalmente entrou e trancou as portas. Então eu me preparei para enfrentar esse "homem bonzinho". Seja lá qual for idiota doente que criou esta pequena atração, eu não estava disposto a deixá-lo sair por aí atraindo crianças pequenas com bugigangas baratas apenas para que ele pudesse se divertir. Segui as pegadas de Cynthia direto para a árvore até que ela apareceu diante de mim, maior que a vida. Foi então que eu notei algo sobre os sapatos: eram todos pequenos. Nem um único par maior que o tamanho que uma criança calçaria. Estremeci e me apoiei no tronco da árvore.
Para minha surpresa, era quente ao toque. Eu arranquei um pouco da casca para descobrir o que poderia estar causando esse fenômeno e fiquei surpreso ao ver o que pareciam iniciais esculpidas. Bem, isso não teria sido terrivelmente incomum se não fosse o fato de que junto a essas iniciais, existiam outras. E ao lado destas, ainda mais. Conforme eu arrancava cada vez mais a fina casca de cera, descobria dezenas de iniciais esculpidas, em seguida, centenas. Dei um passo para trás. Comecei a ter uma sensação desagradável na boca do estômago, aquela torção dolorosa que se forma quando você sabe que algo está errado. Eu olhei de novo para os sapatos, e a torção piorou. Vi os tênis de Cynthia pendurados ali, como pequenos cadáveres, oscilando lentamente por suas entranhas entrelaçadas.
Fodidamente assustado nesta hora, me virei e corri de volta para a porra do carro com minha respiração formando nuvens pesadas no ar frio e cortante. Peguei a chave, abri a porta do lado do motorista, entrei e tranquei-a atrás de mim. Virei-me para Cynthia e perguntei: "Você está bem querida? Alguém te machucou ou te tocou?"
"Não, papai, eu estou bem! O Sr. Sorriso é engraçado, ele me faz rir. Ele tem uma cara engraçada!"
Aquele nó no estômago torceu e espremeu, enviando tentáculos gélidos de medo em direção ao meu coração. "Quem é o Sr. Sorrisos, Cynthia?"
Cynthia ficou sem palavras quando seus olhos deslizaram para o banco traseiro. Meu coração congelou enquanto eu lentamente virei meu olhar para acompanhar os dela. Ele descansava casualmente lá atrás...Tinha uma aparência vagamente humana. Garras ósseas unidas ordenadamente saíam debaixo da carne podre de seus dedos. Sua "cara engraçada" era uma massa de pele em decomposição esticada sobre seu crânio branco descorado. Os cantos de sua boca estavam descarnados, deixando apenas uma careta macabra gravadas sob suas órbitas sem olhos. O sorriso grotesco arregalou-se e ele alcançou uma jarra ao seu lado, pegando um pequeno pedaço de doce entre seus dedos decrépitos.
"Gostaria de um doce?"
Eu olhei, congelado em terror, quando a mão de Cynthia se esticou e pegou o doce de suas garras e começou a desembrulha-lo. O olhar sem olhos da criatura parecia mudar para encarar meu próprio olhar horrorizado, o seu sorriso nojento se alargou levemente. Tentei gritar, mas, curiosamente, descobri que não podia. Engraçado, eu ainda não tinha notado sua outra mão subindo no meu pescoço. Um frio rastejante percorreu minhas veias conforme suas garras geladas apertavam minha garganta. Sangue quente escorreu do meu peito enquanto dava meus últimos suspiros ofegantes pelo buraco recém-rasgado em meu pescoço. Cynthia olhou para mim com curiosidade, mastigando inocentemente naquele pedaço de doce. Sua voz ecoou a minha volta enquanto eu descia em uma espiral de escuridão.
"Papai? Que há de errado? Papai...? Papai ..."
Fonte: Sintonia Alcalina
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