Ligo a luz do abajur. - Maldição. – sussurro eu, levantando-me da cama para atender o maldito telefone, que insiste em gritar desesperadamente. Tenho que ser rápido, não quero que o telefone acorde meu filho, já que nas ultimas semanas ele tem tido serias dificuldades para dormir. Aparentemente ele esta sofrendo com pesadelos, coisas da idade, ele tem sonhado com uma sombra que o persegue, quando criança também tivera sonhos assim. Essa é a primeira noite no ultimo mês, em que Rachel e eu não o temos como hospede em nosso quarto, e não quero que ele acorde.
Visto o roupão sobre meu corpo nu, tento localizar meus chinelos, localizo o esquerdo, o direito certamente esta sob a cama, não há tempo, sigo descalço até a porta do quarto, que cede à minha pressão abrindo – se. O telefone parece ter ganhado ainda mais fôlego. Salto para fora e finalmente alcanço o aparelho.
- Alô. – falo sem o menor vestígio de simpatia na voz, afinal essa ligação provavelmente é algum engano.
- Senhor Luis Henrique Camargo? – pergunta-me uma voz feminina, provando não se tratar de engano.
- Ele mesmo, quem está falando?
- O senhor é proprietário de uma casa situada na Rua João Pedrosa, número 23, no bair...
- Sim. – respondo com irritação, interrompendo o restante da frase.
- Sou a oficial Joana Martins, da policia, alguns moradores das proximidades relataram distúrbios no local, mandamos uma viatura para o endereço, e os policiais comprovaram que ocorreu um assassinato, estamos aguardando o senhor com urgência no local.
- O que tenho a ver com isso?
- Desejamos que o senhor compareça a cena do crime para prestar esclarecimentos.
- Não tenho o que esclarecer.
- O senhor é dono da residência, onde houve um crime, é de suma importância que o senhor compareça ao local.
- Certo, estou indo para lá.
- Obrigada pela compreensão. Tenha uma boa noite senhor.
Bato o telefone contra o gancho e me ponho a caminhar em direção do quarto, imaginando como essa criatura é capaz de me desejar “uma boa noite”, logo depois de acabar com a minha noite. Atravesso a porta e vejo Rachel, dormindo como se nada tivesse acontecido. Sento – me ao seu lado na cama e afago-lhe os cabelos escuros uma dezena de vezes, fazendo-a acordar.
- O que você faz acordado querido? – me pergunta ela como quem ainda está meio dormindo.
- Querida você não ouviu o telefone tocando? – falo, levantando – me da cama para me vestir.
- Não. Quem era?
- Recebi uma ligação da policia, e preciso ir até a antiga casa da minha família, segundo a policial houve um crime no lugar, e eles me aguardam para me fazer algumas perguntas.
- Nossa! Você quer que eu vá com você?
- Não meu bem, fique em casa com Thiago, se eu precisar de algo eu ligo. Não há com o que se preocupar, provavelmente alguns moradores de rua fizeram daquela casa seu lar, acredito que o problema tenha sido entre essas pessoas.
- Mas se precisar de advogada, pode chamar, não vou cobrar os honorários extras de você, mesmo tendo que te atender de madrugada. – Rachel me fala isso com um sorriso bobo no rosto. Como odeio esse sorriso, que sempre me faz derreter. Como amo essa mulher.
- Eu ligarei se for preciso.
Depois de um beijo, deixo minha esposa dentro da garagem vestida com seu hobby cor de rosa. Posso observar a porta da garagem se fechando, encobrindo o corpo de Rachel, pouco a pouco. Somente depois de que a luz da garagem se apaga sigo meu caminho.
Chove muito, o suficiente para o limpador de para brisa funcionar na velocidade máxima. Serão 30 minutos dirigindo, até a casa onde vivi parte da minha infância. Trinta minutos de amargas recordações.
Eu tinha a idade de meu filho, sete anos, quando estivera naquela casa pela ultima vez. Era uma sexta feira à noite e eu já estava em minha cama, porém não conseguia dormir, meus pais brigavam no andar de baixo. Em certo momento ouço meu pai dizendo que iria sair. Em seguida o forte som de seus passos no assoalho de madeira da sala em direção à garagem. Longos minutos de silencio. Estou adormecendo, quando o silencio é quebrado pelo estampido do disparo de arma de fogo, assustado deito-me debaixo de minha cama. Ouço passos, dessa vez em direção da cozinha. Mais alguns minutos se passam e ouço mais um disparo. Agora o silencio é total, eu deitado sob a cama, tremendo de frio e medo, sem entender o que está acontecendo.
Depois de um tempo escondido em minha fortaleza infantil, encho – me de coragem e decido ir para o andar debaixo. Saio do quarto, lentamente desço os degraus da escada apoiando no corrimão, olhos arregalados, nunca levara tanto tempo pra descer aquelas escadas, pois já imagino o que me espera. Ao chegar à sala vejo minha mãe sentada na sua cadeira favorita, com sua revista de fofocas sobre o colo, e com um buraco na testa. A parede atrás dela pintada com um borrão disforme de sangue. Começo a gritar e corro para a cozinha, onde meu pai está sentado em uma poça de sangue, defronte a geladeira, na mão direita uma arma e na esquerda uma garrafa de bebida. Saio correndo de casa aos gritos, para nunca mais voltar a botar os pés lá. Na época, diferente de hoje, quase não haviam moradores naquela redondeza, lembro me de ter corrido muitos metros até chegar a casa dos vizinhos mais próximos.
Tempos mais tarde descobri que meus avós paternos haviam morrido nas mesmas circunstancias, na mesma casa. Depois de uma discussão meu avô matara minha avó com um machado e depois cometera suicídio se enforcando na sala de estar. Segundo minha tia Sofia, foi meu pai que encontrou os corpos. Ele tinha na época menos de 10 anos de idade.
Fui criado pela irmã de minha mãe, tia Sofia, cursei faculdade de Odontologia, e foi na faculdade que conheci minha esposa, ela cursava direito. Ha cerca de quatro anos tia Sofia falecera, ela tivera dois filhos Raul e Rafael, crescemos como irmãos. O marido de tia Sofia havia morrido antes de eu ir morar com eles, não me lembro dele, pois até antes da morte de meus pais não tínhamos muito contato. Tia Sofia foi uma guerreira, criou dois filhos e um sobrinho, tinha em mãos a parca pensão que o marido deixara, e um emprego na fabrica de biscoitos, que ficava no inicio da rua onde morávamos. Ela deu todas as condições para que tivéssemos uma boa infância. Infelizmente toda pessoa, por mais guerreira que seja, sempre encontra um adversário maior, no caso de tia Sofia, um câncer nos pulmões. O cigarro que a acompanhara por toda a vida adulta, era tido como o culpado pelos médicos. Tia Sofia isentara o velho amigo da culpa, costuma dizer que essa deveria ser a vontade de Deus.
Quando ainda criança, tentamos inutilmente por a casa a venda. Infelizmente o local já havia entrado para o folclore da cidade como um lugar amaldiçoado. Os anos foram passando, e como o dinheiro era curto, não tínhamos como fazer a devida manutenção. A casa se deteriorou, foi diversas vezes arrombada, pelos garotos da vizinhança que desejavam uma aventura pela casa mal assombrada, mais famosa da cidade. Por vezes Raul e também Rafael foram até lá chamados pelos vizinho ou pela policia, em função de algum arrombamento. Eu jamais retornara, sempre que os vizinhos avisavam sobre algo, meus primos se encarregavam, e mais recentemente eu enviava o senhor José, um homem que trabalha fazendo “bicos”, para cumprir com algum reparo no local. Por mim a casa poderia ir abaixo, mas ela está lá, como uma ferida aberta que de tempos em tempos insiste em infeccionar, provocar dor, e deixar bem claro que não vai me deixar em paz.
A chuva continua castigando, caindo em pingos gordos e barulhentos sobre o teto do carro. Chego ao local e não avisto nenhuma viatura de policia, porém posso ver, através das fendas nas janelas, luz dentro da velha casa. Suponho serem as lanternas dos policiais, afinal há muitos anos não há nem luz, nem água, tampouco móveis no interior do lugar. Estaciono meu carro defronte o portão e respiro fundo, como se isso fosse afastar de mim os fantasmas da minha infância, ou me encher de coragem, engano meu. Saio do carro e parto em disparada, rumo à varanda de entrada da casa. Atravesso o longo quintal, que outrora fora bonito e vistoso, hoje apenas um matagal. Escorrego algumas vezes, mas chego à varanda, um tanto molhado e sujo de lama. A madeira começa a ceder sob meus pés, respiro fundo novamente e empurro a porta, ela geme lentamente, deixando escapar claridade, entro rapidamente fechando a porta por detrás de mim.
Dentro da casa olho atônito para tudo, está tudo lá, tal como o dia em que sai aos gritos, o tempo parece não ter passado. Observo a sala de estar, todos moveis intactos, inclusive o tapete onde eu me debruçava para brincar com meus soldadinhos de plástico, enquanto meu pai assistia ao telejornal da noite e minha mãe folhava suas revistas favoritas, a mesma sala onde meu pai estourou a cabeça de minha mãe com sua arma de fogo, é o local da casa onde passei os melhores momentos da minha infância em companhia dos meus pais. Com passos tímidos e amedrontados passei pelo ambiente, toco com a ponta dos dedos o encosto da poltrona favorita de minha mãe, meus olhos se enchem de lagrimas, mas ao chegar à cozinha, o saudosismo dá lugar ao desespero, vejo sentado à mesa a figura de meu pai, cotovelos apoiados sobre a mesma, lendo jornal. Olho na direção do fogão e vejo minha mãe, preparando ovos mexidos, nesse momento me dou conta de haver música no local, o rádio toca os sucessos da minha infância. Apoio-me na parede, as pernas não me dão o apoio necessário, o estomago parece pesar dentro de mim, caio de joelhos, as palmas das mãos apoiadas no solo. Posso até sentir o cheiro da comida que minha mãe prepara para meu pai.
– Estou ficando louco. – Penso comigo mesmo. – Isso não é real!
Tento por – me de pé, mas meu corpo treme, treme o suficiente para me levar novamente ao solo. Olho para frente, e vejo as figuras de meus pais, em pé, a poucos passos, olhando para mim, agora vestidos como na noite em que partiram, posso ver neles os ferimentos a bala, o sangue, sua pele pálida quase azul. Eles parecem estar sorrindo, um sorriso simpático, apesar dos dentes pretos. Fechos os olhos, no mais infantil, e desesperado, ato de negar o que está acontecendo, mas o que está acontecendo? Permaneço de olhos fechados, mas os demais sentidos continuam brincando com minha sanidade, com sons, texturas e odores que não deveriam estar naquele lugar. Ouço passos em minha direção. Abro os olhos rapidamente e vejo que ambos se aproximaram ainda mais. Agora suas faces envoltas em uma estranha e assustadora sombra, que parece crescer, envolvendo – os, deixando para trás apenas um brilho prateado no lugar dos olhos. Na mão esquerda de minha mãe, uma grande faca, meu pai a abraça pelos ombros, e na sua mão direita vejo uma corda. Meu corpo treme descontroladamente, minha cabeça gira.
- Isso não é real! Sumam daqui! – grito desesperadamente. Volto a olhar para o solo, as forças vão embora de vez, ao longe ouço um estridente sorriso, que ecoa dentro da minha cabeça, os olhos embaçam, desabo e apago.
Acordo tempos depois com o rugido de um trovão. Minha cabeça dói, está escuro, o lugar muito deteriorado, sem moveis, cheirando a urina, por todo canto vejo ratos. Estou de fato na casa de meus falecidos pais, estou de volta à realidade, tento me convencer que os eventos de antes foram apenas minha imaginação. Talvez tenha entrado na casa e tenha sido atingido por alguém, ou alguma madeira que viera a baixo, e que o encontro com meus finados pais, tenha sido fruto da minha imaginação, quem sabe um pesadelo. A versão é boa, começo a rir dela enquanto levanto – me e sigo em direção da porta. Quando estou a dois passos do meu objetivo a mesma se abre, e para meu desespero, por ela entra minha esposa e meu filho.
- Rachel o que faz aqui? – pergunto aos gritos, enquanto meu coração acelera de maneira descomunal, fazendo com que eu possa senti-lo bater numa veia localizada na testa.
- Você me ligou do seu celular pedindo para que eu viesse até aqui, que você precisava de mim.
- Mas eu não liguei para você. – Olho apavorado para minha esposa, quando podemos ouvir a porta ranger e bater fechando - se, empurrada pelo vento, ou não.
Passo pela minha esposa e me ponho a forçar a porta, sem sucesso. Rachel e Thiago movimentam se pelo lugar, já não os vejo mais, mas posso ouvir seus passos.
- Fiquem perto de mim!! – grito desesperado.
- Fique calmo querido, estamos aqui.
Minha esposa mal havia terminado a frase e um relâmpago ilumina toda a casa, em especial a cozinha. Nesse momento lembro-me da porta dos fundos, e quando penso em me dirigir até lá ouço um gemido meio engasgado, em seguida Thiago começa a gritar desesperadamente. – Papai! Papa! Papai! Não consigo vê-los. Não ouço Rachel, apenas Thiago, ele grita como que se estivesse se afastando de mim. – Papai! Papa! Papai! Tento correr, mas algo me segura pelo braço, algo gelado e pegajoso, sinto um objeto ser colocado em contado com minha mão, nos susto seguro firme o tal objeto, tateio com os dedos tentando identifica-lo, imagino ser o cabo de uma faca. Mais um relâmpago rompe a noite iluminando o ambiente, o suficiente para eu ver que o objeto de fato é uma faca. Tento solta-lá, mas não consigo abrir minha mão, como se alguém estivesse com suas mãos envolvendo a minha, mãos geladas. Quando outro relâmpago cruza os céus, localizo Rachel no canto da sala, próxima de onde encontrei minha mãe naquela sexta feira a noite, para meu desespero ela encontra – se envolvida por uma sombra, tal como a sombra dos meus sonhos infantis, como a sombra dos pesadelos do meu filho, posso ver apenas seus olhos arregalados movimentando-se freneticamente, seu desespero me aperta o peito, tento inutilmente me mover, como se dezenas de mãos me segurassem, sinto uma brisa gelada tocar minha orelha esquerda.
- Pronto filinho, eu e seu pai demos-lhe uma ajudinha, agora cabe a você seguir a tradição da família, pois as tradições são importantes, para nos manter sempre unidos.
Autor (F.S.G)
Meus sinceros agradecimentos ao Nando do Noite Sinistra, nosso parceirão, por ter enviado esse ótimo conto de sua autoria :D
Gostei da historia, super bem feita ! Tive um pouco de preguisa no começo, mas depois da parte que os pais aparecem, continuei interessada, e um bom fim do mundo haha ( 20/12/12 )
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