Naquela manhã existia algo de diferente no ar. Emiliano, em questão de alguns minutos, poderia estar livre para desfrutar da paz tanto esperada. Aquele que durante tantos anos o atormentou, com exigências e ameaças, ao que tudo indicava, estava pronto para atravessar a fronteira final.
Seu pai, um homem atormentado pela paralisia, há mais de quinze anos, naquela manhã, parecia que não conseguiria mais se agarrar àquela vida. Emiliano já havia em outras ocasiões, presenciado crises como aquela e por experiência própria, aprendera a não contar como certa, a viagem final daquela criatura que ao longo daqueles anos aprendera a desprezar.
Emiliano já havia perdido a conta do número de vezes em que ele fantasiara aquele dia. Em seus devaneios, era tudo tão simples, limpo, indolor e relativamente rápido. Não auxiliar aquele velho, era a forma mais segura de garantir a paz, não apenas a sua, como a daquela pobre alma moribunda. Bastava não ministrar o remédio e pronto! O tempo se encarregaria de ceifar aquela vida miserável, levando-o para onde ele bem merecia estar. Seriam apenas alguns segundos, no máximo alguns poucos minutos.
Na verdade, para Emiliano, a morte do velho não se consistia apenas em alguns espasmos, alguns sons guturais, um merecido desespero no olhar. Com sorte presenciaria a fisionomia de dor, a expressão de horror e ao final, o completo relaxamento daquele corpo decrépito. A morte, daquele velho, seria sua passagem para a vida. Uma vida que lhe foi negada pela simples existência daquela repulsiva criatura.
Emiliano não se cansava de amaldiçoar, o dia do fatídico acidente que vitimou sua mãe e concedeu à seu pai aquela vida vegetativa, condenando, o único filho do casal, à uma condição de vida análoga à de um escravo.
Todos os dias, o velho divertia-se, fazendo-lhe exigências descabidas que se não prontamente atendidas, invariavelmente resultava na ameaça de deserdá-lo. A cada nova exigência, Emiliano vociferava: "- Se esse velho f.d.p. tivesse partido ao invés de minha mãe... certamente minha vida seria diferente."
Porém, naquela manhã, alguma coisa estava diferente. Existia a convicção que uma nova vida estava para começar, bastava tomar a decisão correta e aguardar as decorrências.
Enquanto seu pai lentamente agonizava, por estar privado de sua medicação, Emiliano sentia seu corpo formigar, uma dormência dolorida. Um calor intenso acompanhado de um suor frio e anestésico percorria seu corpo. Sua respiração havia parado em uma longa e interminável inspiração. Seus pulmões e seu coração doíam e parecia que não resistiria a tamanha pressão, achava que explodiria se aquela sensação perdurasse por mais algum tempo. Seu corpo assumia um peso descomunal, impedindo-o de se movimentar.
Enquanto procurava desvencilhar-se daquele estado, pode ver, que no chão, próximo à janela, três pequenas colunas de fumaça negra formavam-se do nada. A medida que avolumavam-se, etéreas e conturbadas como se impelidas pelo vento, evidenciava-se o vulto de três criaturas cobertas com vestes negras. A escuridão que emanava de seus corpos absorvia toda a luz que estivesse ao seu redor, transformando aquela visão, num caleidoscópio de luzes em torno de seus corpos. Estranhamente, toda luz existente naquele quarto, naquele momento, foi inexoravelmente atraída para interior negro daquelas criaturas, devorados pela escuridão.
Com extrema agilidade, a maior das criaturas atravessa o quarto em direção à Emiliano, enquanto as outras duas, debruçavam-se sobre o corpo agonizante e convulsionado de seu pai, envolvendo-o numa névoa negra, devoradora de luz.
Apavorado, Emiliano tenta vislumbrar o rosto daquela criatura que postou-se à poucos centímetros do seu rosto. Podia sentir o bafo pútrido da criatura, mas não conseguia distinguir seus traços fisionômicos. A conturbada névoa negra, que escondia a identidade daquela criatura, assumia a forma daqueles que já haviam se defrontado com ela, e todas as imagens que se revelavam, o terror e a desesperança estavam sempre estampados nas fisionomias que se revelavam.
A criatura não emitia qualquer som, estava ali, à sua frente, sem movimento, sem expressão, apenas exalava um odor nauseabundo. Emiliano podia sentir a descomunal força do penetrante e feroz olhar daquela criatura, sabia que se ela desejasse, poderia extinguir não apenas seu corpo, mas consumir por completo sua alma. Naquele momento, temia por sua vida, e acreditava que sua hora havia chegado. Com um movimento lento e sutil, a criatura afastou-se e estendeu sua mão tocando suavemente a testa de sua vítima. Imediatamente seu cérebro foi invadido por uma avalanche de imagens e sons, inexplicáveis e incompreensíveis para um ser humano. No entanto, uma frase, no emaranhado daquelas informações, pode ser decodificada com impressionante clareza: " - Hoje, será o que não foi."
Tão rápido como surgiram, as três criaturas desvaneceram-se. Como se houvesse ocorrido um vendaval, seus corpos simplesmente desintegraram-se e Emiliano pode então, finalmente, espirar o ar que comprimia seus pulmões, tombando de imediato ao chão.
Enquanto restabelecia sua respiração e seu batimento cardíaco, permaneceu imóvel por algum tempo. Com dificuldade, levantou-se, apoiando-se aos pés da cama de seu pai. Uma vez em pé, tonto e cambaleante, Emiliano tenta focalizar a imagem do corpo de seu pai. Gradativamente sua visão vai retornando e para seu terror, descobre que o corpo ali deitado, não é o de seu pai, mas sim, o corpo de uma mulher idosa.
Horrorizado, e não acreditando naquilo que seus olhos viam, atira-se sobre a cama na esperança de estar equivocado. Mas para sua desgraça, o corpo que jazia já sem vida naquela cama, era de fato o de mulher.
Sem poder entender o que se passava, Emiliano fica por alguns instantes observando a fisionomia daquela mulher. Seus traços fisionômicos, pareciam familiares, seu cabelo, seus olhos, seus nariz, sua boca, mas não se recordava do nome daquela mulher, que tanto assemelhava-se a sua mãe.
De repente, enquanto olhava para aquela pobre mulher, Emiliano solta um grito lancinante, abraça aquele cadáver ainda quente, e desaba num choro convulsivo e encolerizado. Estava convicto que aquela mulher morta na cama de seu pai, embora mais velha, era de fato sua mãe, falecida há quinze anos, naquele fatídico acidente de carro.
Emiliano tentava entender o que havia se passado. Estaria sonhando? Estaria louco? Se sua mãe estava morta, onde estaria seu pai? Toda as perguntas que pudessem ser formuladas, naquele momento pareciam não ter resposta.
Sobreveio a noite e foi então que Emiliano começou a compreender a frase que havia traspassado por seu cérebro, quando encarou aquela abominável criatura, "- Hoje, será o que não foi."
Agora entendia que todo aquele incidente, devia-se a suas rotineiras e reiteradas súplicas, "- Se esse velho f.d.p. tivesse partido ao invés de minha mãe... certamente minha vida seria diferente."
Emiliano não podia acreditar, mas aquelas criaturas alteraram o passado, o presente e o futuro em uma única intervenção e o pior é que ele próprio, havia ao longo desses quinze anos, clamado por tal intervenção, não imaginando, que um dia suas súplicas viessem a ser atendidas.
Dois dias se passaram e Emiliano continuava inerte abraçado ao cadáver já em decomposição de sua mãe. Por mais que tentasse decifrar aquele horripilante incidente, sempre chegava a inexorável conclusão de que, se sua mãe, embora mais velha do que podia se recordar, estava ali, com ele, ao que parecia, ela havia sobrevivido ao acidente e se assim ocorreu, por dedução lógica, guardando-se à estreita interpretação de suas súplicas, seu pai não havia sobrevivido ao acidente. Restava então, que ele, havia por omissão, matado sua própria mãe, ao não ministrar-lhe os medicamentos prescritos inicialmente a seu pai.
Foi ao por do sol, do segundo dia, que Emiliano, colérico e repleto de remorso, num definitivo rompante, decide-se por extinguir sua própria vida, atirando-se pela janela daquele quarto, na esperança de livrar-se do remorso, egoísmo e estupidez que consumiu sua amaldiçoada vida.
Passados mais de nove anos dos fatos aqui narrados, todas as noites ouço as desesperadas súplicas de meu vizinho de cela. Paralítico pela queda e enlouquecido pelo remorso, clama miseravelmente pela morte, rogando pela clemente intervenção das três criaturas.
Por isso, embora atualmente residindo em um hospital psiquiátrico, rogo aos leitores dessa história, que antes de rogarem pela alteração de qualquer fato de suas vidas, por considerarem, tais fatos injustos, lembrem-se que sua súplica pode um dia, vir a ser atendida e seus executores, não consideram o dia, a hora, a conveniência, a oportunidade ou suas decorrências.
Eles existem e estão entre nós, para atender as súplicas daqueles que vivem a se lamentar imaginando O QUE SERIA SE NÃO FOSSE.
Crédito: Ben-Dyan
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