Vlad III "O Empalador"
20 mil corpos humanos apodrecem ou agonizam diante da cidadela abandonada, uma floresta de empalados capaz de atemorizar até o líder do maior império do planeta. O sultão turco Mehmed II, conquistador de Constantinopla e veterano de muitas guerras, diz para quem quiser ouvir que não é possível enfrentar um inimigo que se dispõe a tal ato. Deixa o comando de seu exército e volta para a segurança de seu harém.
Esse inimigo implacável, que no século 15 deteve o avanço do Império Otomano, envergava com orgulho uma alcunha hoje mundialmente famosa: Drácula. Ele era Vlad III da Valáquia, embora seus conterrâneos e inimigos tenham usado também o sinistro apelido de Tepes, “o Empalador”, em romeno. Por uma série de acasos literários, esse príncipe virou sinônimo de vampiro sem ter nenhuma ligação com as criaturas da noite, mas o verdadeiro caráter do Empalador é quase tão misterioso quanto os desses seres: herói nacional, tirano sanguinário ou uma mistura improvável das duas coisas?
Talvez a resposta para o dilema seja difícil de achar porque Vlad viveu num dos períodos (e lugares) mais complicados da história européia. A região que mais tarde se transformaria na Romênia não passava de um aglomerado confuso de principados minúsculos, esmagados entre gigantes. A noroeste, havia o Sacro Império Romano-Germânico, senhor da Alemanha e da Itália e maior potência da Europa Ocidental. Em torno de si (como num abraço mortal), o reino da Hungria começava a ter papel preponderante como campeão da cristandade contra a ameaça turca, ao sul, onde o Império Otomano reduzira os mil anos de poderio Bizantino a um território nanico na Grécia e no Bósforo, onde Constantinopla ainda resistia heroicamente – mas não por muito tempo.
Com tantos grandes brigando entre si, povos mais fracos às vezes conseguiam um espaço para respirar e tentar a independência. Foi o que ocorreu com os ancestrais dos romenos, diferentes de todos os outros povos dos Bálcãs por falarem uma língua latina, assim como o português, herança da antiga colonização romana. A Valáquia, no sul da atual Romênia, escapou do domínio húngaro e passou a ser governada por Besarab, o Grande, em 1330. Dele descendia Mircea cel Batrin (ou Mircea, o Velho), avô de Drácula e príncipe dos valacos de 1386 a 1418. O novo país parecia consolidado, mas bastou que Mircea morresse para que seu filho Vlad tivesse de enfrentar a rebelião de seu primo Dan, apoiado pelos boiardos (os nobres do país).
Dan proclamou-se voivoda (príncipe) e Vlad teve de se retirar para a Transilvânia (então parte do território húngaro). Foi lá que nasceram seus três filhos (Mircea, Vlad e Radu) na cidade de Sighisoara – aliás, essa é a única verdadeira associação do futuro Empalador com a famigerada Transilvânia, já que ele nunca foi conde do lugar. Acredita-se que Vlad filho veio ao mundo em 1431 – ano em que o famoso apelido do príncipe valaco teve sua origem. O imperador germânico Sigismundo convocou Vlad pai a Nuremberg e nomeou-e para a Ordem do Dragão – um grupo de cavaleiros dedicados à defesa do imperador e da cristandade contra a ameaça turca. Vlad parece ter gostado tanto da honraria que adotou o título de Dracul, “o Dragão” (“drac” é dragão em romeno, enquanto “ul” equivale ao nosso “o”). Quando adulto, seu filho do meio também entrou para a Ordem do Dragão e se tornou Draculea ou Drácula – “Filho do Dragão”.
Há quem acredite que o termo também tem a conotação de “demônio” em romeno, mas o fato é que, pelo menos no nome, ambos os “Vlads” (pai e filho) eram guerreiros de Cristo.
Em 1436, Vlad Dracul (o pai) conspirou para assassinar Alexandru I, o governante dos Danesti (a facção de Dan), e tornou-se Vlad II da Valáquia. Apesar de seu juramento de fidelidade à Ordem do Dragão, Vlad Dracul logo percebeu que aquela não era a hora de bancar o cruzado. Os turcos estavam cada vez mais poderosos e, numa tentativa de apaziguá-los e conseguir um pouquinho de independência, ele foi obrigado a enviar Vlad (o filho) e Radu como reféns para as terras do sultão.
Os dois meninos passaram sete anos entre os turcos. Quando o sultão finalmente decidiu liberar os dois, em 1448, só o mais velho, Vlad, escolheu voltar à Valáquia. Não foi uma boa idéia: ao chegar em casa, ele descobriu que seu pai e seu irmão Mircea (herdeiro do trono) tinham sido assassinados pelos rebeldes boiardos, que decidiram apoiar um Danesti. Seguiu-se um luta pelo poder e, por alguns meses, o jovem príncipe conseguiu se apoderar do trono, tonando-se Vlad III. No entanto, um golpe com o apoio dos húngaros o tirou do poder. Os vizinhos não gostavam nada da política de apaziguamento do pai de Drácula em relação aos turcos e colocaram em seu lugar um vassalo do rei húngaro.
Eles logo se arrependeriam da decisão: o novo voivoda mostrou-se um covarde pró-otomanos. Numa daquelas reviravoltas das quais só os políticos são capazes, os húngaros ofereceram seu apoio a Drácula, ou seja, deram-lhe um poderoso exército. Assim, em 1456, Vlad retomou o comando da Valáquia. “Foi nessa época que Drácula realizou seus maiores feitos militares e cometeu as maiores atrocidades”, diz a pesquisadora canadense Elizabeth Miller, da Memorial University of Newfoundland, especialista em ambos os “dráculas” – o histórico e o personagem literário.
Sua posição, mais que nunca, exigia coragem. Afinal, três anos antes, a própria Constantinopla tinha caído, e os turcos não viam a hora de estender seus domínios entre os principados do outro lado do Rio Danúbio. Para resistir ao avanço do Império Otomano, Vlad adotou uma astuta tática de guerrilhas que conseguiu lhe garantir o sossego por alguns anos. Era hora de obter também um pouco de segurança dentro de casa – e é aí que entra o carinhoso apelido de “Empalador”.
Todos os relatos que ainda existem sobre o reinado de Drácula parecem concordar num ponto: o príncipe tinha uma fascinação macabra por empalamentos. Esse método de execução e tortura prolongada envolvia o uso de uma estaca de madeira – de preferência não muito afiada e embebida em óleo, para não matar a vítima de cara. Uma das maneiras de usar o instrumento era enfiá-lo pelo ânus ou pela vagina e fazê-lo sair pela boca, mas Vlad III gostava de variar: podia espetar a pessoa diretamente no abdome ou pregar bebês ao peito das próprias mães, por exemplo. De um jeito ou de outro, o fato é que a coisa doía – e demorava. Conta-se que, quando não podia praticar esse esporte com seres humanos, Drácula contentava-se com pássaros e ratos.
Provavelmente, esse é o mais inegável dos aspectos negativos do príncipe: “Na história romena, Vlad sempre é chamado de Empalador”, diz Elizabeth Miller. “O nome vem do turco kaziklu bey, ‘príncipe empalador’, expressão empregada pelos cronistas turcos dos séculos 15 e 16. Mas o apelido dá uma idéia do medo que ele causava em seus inimigos, e acabou adotado pelos conterrâneos dele.”
Justiça seja feita, Drácula usava o método com um propósito digno de qualquer governante do Renascimento: a unificação do poder real e a humilhação dos incovenientes boiardos. Segundo Elizabeth, ao assumir o trono, Vlad reuniu todos os nobres numa festa e perguntou quantos príncipes valacos haviam reinado durante a vida deles. Ninguém ali tinha visto menos de sete voivodas no trono. E Vlad teria dito: eu serei o último que verão. “Ele mandou empalar os mais velhos e fez com que os mais jovens e fortes trabalhassem na construção de uma nova fortaleza perto de Tirgoviste, a capital valaca”, diz. Outras vítimas da fúria de Drácula foram os comerciantes saxões que dominavam as conexões entre os Bálcãs e o Ocidente europeu e que tinham uma tradicional aversão ao pagamento de impostos. Vlad passou a cobrar pedágios nas principais rotas comerciais. Com o dinheiro, construía mias estradas e reforçava seu exército.
Os registros da tradição oral romena costuma enfatizar as duras represálias do príncipe contra os criminosos. A política “tolerância zero” de Drácula fez tanto sucesso que o voivoda decidiu erigir um pedestal em Tirgoviste e colocar sobre ele uma peça de ouro, que permaneceu intocada durante todo o seu reinado. Símbolo de que não havia crimes na Valáquia.
Vlad III poderia ter se divertido desse jeito por décadas, mas nada era mais instável que a política balcânica. Era questão de tempo até que os turcos se organizassem para um ataque maciço, e ele veio em 1461, quando 60 mil homens comandados pelo próprio Mehmed II cruzaram o Danúbio. O voivoda iniciou uma lenta retirada para o norte, arrasando as terras por onde passava para evitar que os turcos obtivessem provisões e até tentando usar os últimos avanços em armas biológicas da época – soldados com peste que foram mandados para o acampamento turco.
Quando o exército turco se aproximou de Tirgoviste, o Empalador usou sua derradeira e mais poderosa arma: o terror. Eis o que conta a respeito o cronista grego Khalkondyles: “O exército do sultão chegou a um campo cheio de estacas, com cerca de 3 quilômetros de comprimento e 1 quilômetro de largura. Os turcos, vendo tantas pessoas empaladas, ficaram muito amedrontados”.
O recuo otomano, no entanto, foi temporário. Mehmed decidiu apoiar Radu, o irmão de Vlad, numa conspiração para levá-lo ao poder. Os poucos boiardos que sobravam na Valáquia, cansados do absolutismo de Drácula, aderiram ao movimento. Vlad III fugiu para a Transilvânia como fizera seu pai, e foi preso pelo rei húngaro Matias Corvino. Gradualmente, no entanto, Drácula ganhou a confiança do soberano. Ele se casou com uma nobre húngara ligada à família real e, de forma surpreendentemente diplomática, converteu-se ao catolicismo romano (ele sempre fora ortodoxo). A essa altura, Vlad já sofria com um problema familiar à nobreza moderna: a imprensa sensacionalista. Entre os primeiros textos impressos na Europa já estavam panfletos em alemão que celebravam (ou melhor, denegriam) os feitos do voivoda, com manchetes do tipo “A Asustadora e Extraordinária História do Cruel Tirano Bebedor de Sangue Chamado Príncipe Drácula”.
Matias Corvino finalmente decidiu apoiar a volta de Drácula ao poder, e o mesmo fez o rei Estevão da Moldávia, parente do Empalador. Com essa ajuda, Vlad III cruzou a fronteira transilvânia e, mais uma vez, assumiu o trono, em 1476. O grosso das tropas, no entanto, logo voltou a suas regiões de origem, e Vlad teve de enfrentar sozinho mais um ataque turco. Era o fim da linha: numa batalha numa floresta ao norte de Bucareste, o voivoda foi derrotado e decapitado. Sua cabeça foi enviada a Constantinopla e exposta; seu corpo mutilado, de acordo com a tradição, foi sepultado no mosteiro de Snagov, embora uma escavação arqueológica, feita nos anos 30, não tenha conseguido localizar os restos mortais do guerreiro.
“Se julgarmos somente com base em documentos escritos, então Vlad é mais tirano que herói”, avalia Elizabeth Miller. “Os relatos alemães e turcos enfatizam sua crueldade. Mas os alemães ou saxões da Transilvânia se opunham a ele por razões econômicas e políticas, e os turcos eram seus inimigos”, diz. Segundo ela, os relatos romenos são apenas orais, e eles tendem a ver Vlad como um herói. “Ele realmente conseguiu defender seu pequeno principado de um império poderoso, por algum tempo. Não há dúvidas sobre sua crueldade, mas pode-se argumentar, como fazem muitos historiadores romenos, que ele não era pior que outros líderes de seu tempo”, afirma a pesquisadora.
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